quarta-feira, 25 de junho de 2008
a minha casa tem quatro rodas
joão fechou a porta atrás de si e sorriu, ele sabia que o passado estava agora do lado de fora da porta, amélia entrou no carro, acomodou-se no banco enquanto ligava o rádio e ouvia a metereologia, pensou na chuva que se adivinhava certa para amanhã e deixou que algumas lágrimas lhe caíssem rosto abaixo. joão entrou na cozinha, sentou-se a observar a chaleira que ainda assobiava à lareira, agarrou a sua mão e tirou a aliança com cuidado, lançou-a para cima da mesa e respirou a liberdade, cheirava-lhe bem, a rosmaninho e a alecrim ou a cravo e a canela, já nem distinguia os cheiros. amélia tinha os cabelos presos como os gestos ainda presos àquela casa que de repente deixara de lhe pertencer, joão tinha os olhos livres em órbitas de outros planetas onde amélia nunca pousou os pés. e o que para amélia ainda era um campo de minas para joão não passava de um molho de rosas colhidas à tardinha no jardim atrás da casa. amélia agarrou-se ao volante e deixou que a tristeza de uma despedida lhe caísse em vozes de silêncio atadas na sua boca. joão permaneceu com um sorriso rasgado e redondo no rosto, abriu a gaveta da sala e retirou o álbum de fotografias que via agora pela última vez. amélia chorava enquanto o joão cantava as maravilhosas e encantadoras melodias de ser livre.
joão tinha os dedos gastos por dedilhadas de músicas que o tempo tornava nostálgicas, amélia nunca soubera tocar fosse o que fosse, nem o coração dele ela conseguiria tocar uma vez que fosse. joão corria pela casa ao som de passos já esquecidos no soalho. amélia chorava dentro da casa que lhe sobrara, a única casa que agora podia considerar realmente sua. joão deu a volta à casa pelo lado do jardim e ainda viu o carro ali parado, zangado atravessou o pátio a passo rápido, amélia entretinha-se agora a escolher uma banda sonora triste para a acompanhar na sua última viagem estrada fora, joão bateu no vidro, três pancadas que não eram de amor, amélia abriu o vidro que descendo levava consigo grande parte da mobília de uma casa que acabara de lhe pertencer, joão rispidamente bateu o pé no pneu enquanto uma dúzia de vocábulos disconexos lhe saíam pela porta da frente do corpo, a boca. amélia tremia, bailava entre as pupilas do joão sem perceber em que momento o tinha desagradado mais, calou-se, ficou encostada ao banco com as mãos escondidas nos bolsos onde ainda guardavam sonhos que havia de ter. joão abriu a porta do carro como se ele ainda fosse dele, amélia pontapeou-lhe as canelas e num gesto pouco súbtil trancou a porta, subiu o vidro e metendo a marcha-atrás despediu-se num ápice do joão que caído continuava agarrado aos seus cheiros de rosmaninho e jasmim ou cravo e canela, travos doces de uma liberdade que começava agora a ser amarga.
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