sexta-feira, 31 de outubro de 2008
as tuas mãos ficaram mudas, pousadas em cima da tua bacia, brancas, prontas para morrer antes do gesto que precede um adeus. o teu corpo é um jazigo. enquanto esperas pousas a cabeça sobre o vão da escada e aninhaste em ti, ficas ali não sei por quanto tempo até te aperceberes que o teu corpo assim fechado é uma concha que não deita fora a ostra. os teus seios são dois figos maduros que a figueira em breve deixará cair, tens dois queixos e a pele da tua barriga é um vale repleto de pequenas fendas montanhosas. se fosses apenas pequena como os dias, intemporal como ele, do alto da sua juventude, no compasso discomposto das mãos pousadas sobre a tua cintura a pedir-te uma última dança, se fosses apenas capaz de voltar ali. o salão coberto de gente risonha, gente vazia por dentro, gente aparente e os dois, inclinados sobre o bar com um martini rosé na mão a sonhar uma casa de frente para a praia. tudo o que tiveste foi uma noite e nem naquela noite soubeste ser feliz. quando agora te olhas ao espelho não vês a candura dos dias a entardecer, nem tão pouco a primavera a antecipar o verão, és inverno ou és fora de estação, nenhuma flor crescerá entre as tuas silvas. dói-te fundo no peito, o buraco negro no lugar do coração, estás podre e os teus órgãos caem-te aos pedaços sobre o chão, a pele debaixo dos olhos, debaixo dos braços, debaixo da saia morre, morre no tic tac do relógio que te come o pulso. eras surda e não tinhas sonhos, tinhas as mãos delicadas como duas ampulhetas prestes a explodir areia no fim do tempo, ao fim ao cabo sempre foste o limite, a linha ténua entre o perfeito e o imperfeito. e a tua solidão é elevada ao quarto onde ele te enfiou a mão, ladeira abaixo a mão em movimentos circulares, da frente para trás, de trás para a frente e o mundo todo lá dentro, à espera na mão a sugar-te os anos. foste tu, no substantivo de um verbo que nem ouso nomear, ateada em fogo, barril de pólvora, tu. talvez os anos te pareçam agora curtos mas foram longos como os dedos das mãos que olhas, é no planalto do conhecimento que as sabes tuas, as mãos, sempre mudas, pousadas em cima da tua bacia, brancas, prontas para morrer antes do gesto que precede um adeus.
1 comentários:
Uma vida que se esvai? Um corpo sem alimento, uma alma que aguarda o renascer?
Belíssimo texto. Mais um. Que encerram todas as palavras. Por isso, quando por aqui passo, leio e não tenho palavras para comentar. A não ser que as repita. como agora.
Como é bom ler-te.
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