quarta-feira, 5 de novembro de 2008
esta viagem começa numa recta, o percurso é o mesmo de sempre, curva contra curva até ao barulho da campainha no pátio. o motorista é o mesmo, o bigode agora branco, o cabelo agora grisalho mas sempre o mesmo tom de voz, ausente, a pedir que lhe mostre o passe. sento-me no banco e o nevoeiro traz-me memórias de tempos perdidos entre o asfalto. a senhora fala-me com a voz estreita entre os bancos, a dois ou três passos de mim leva as mãos ao cabelo e sorri com os braços abertos, eu deixo-me ser pequena outra vez e, ainda com os olhos postos no vidro da janela, lembro-me a mochila no colo, os livros do eça perdidos entre os tantos cadernos, quatro, um para cada disciplina, lembro-me do corpo magro entre a roupa larga, roupa que me davam que só estreava roupa no natal e na páscoa. a senhora demora-se mais entre os bancos, é de longe que a vejo sentada na secretária com um bando de folhas soltas sobre as mesas e quinze corpos sentados em frente dela, na parede cristo crucificado. e eu vejo-lhe as rugas no rosto, morto por entre as mechas de cabelo que lhe caem dos dedos. olha-me nos olhos e lembra-me do corpo pequeno que tive, encolhido ao fundo da sala, morto de silêncio, caído ao canto entre a parede e o aquecedor e a voz dela repreende-me a apatia, o não movimento das mãos e eu, em silêncio, percorro o autocarro todo, encolho-me no cheiro a serrim queimado vindo do aquecedor e sou corpo pequeno, sentado ao fundo da sala, no canto, eu e a minha timidez voltamos a habitar o autocarro todo num abraço. a senhora fala-me com os olhos cobertos de lágrimas, o meu rosto congela o tempo entre os seus braços e o nevoeiro conduz o autocarro até ao velho colégio.
2 comentários:
Passei para te ler. Gosto da tua linguagem clara. Das memórias. Da escrita tão cuidada. Um beijo.
dejá vu.
*
Enviar um comentário
< home