domingo, 2 de novembro de 2008
tinhas o parco riso espesso de quem vem de longe, de quem traz o mundo inteiro cravado nos dentes. sentaste-te ao fundo, no canto junto à vitrine, pediste um café com os olhos postos na chuva miúda a atravessar a rua, como uma criança desnorteada. parou o tempo ali, naquele gesto, um leve erguer de mão e um mexer de lábios, a chuva a conta gotas no vidro e a rua cortada ao trânsito, andava em obras. o tempo estava-te preso no cachecol vermelho, cor de sangue vivo, enrolado no pescoço ao ponto de te esganar o corpo. mantinhas a expressão do costume, nem tanto doce nem tanto amarga, a tal mistura da ausência com presença que te ficava bem, assentava-te na pele à volta dos olhos e agasalhava-te da frieza dos tons monocórdicos. nunca foste de grandes conversas e contigo ninguém tinha mais do que monólogos. era pequena que te vias, todas as manhãs, do outro lado do espelho, mas da tua pequenês não se falava porque a altitude dos teus sonhos cobria-te os músculos. aos solavancos lá te saíam alguns suspiros, grossos como cabeças de agulhas, entre conversas de uma só voz. tinhas chegado à pouco e o café, suspenso no interior das tuas retinas, mascarara-se de natal e é o natal que te cobre os dedos das mãos, abandonados ao consolo de umas mãos tristes, escondidas por duas luvas de lã, velhas, encardidas, pretas tingidas. o teu gesto, preso no tic tac do relógio pendurado por cima da máquina, inverte a vida e fá-la ser tão pouco ou quase nada. eras, és, um berço e não consigo olhar-te sem chorar a infância que não tiveste.
1 comentários:
Hoje não encontro palavras...para falar da ternura sensível desta prosa.
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