sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

a manhã faz-se das parcas lembranças, da lareira onde a lenha estala um fogo que queima e come e a torna em cinza, do autocarro aos solavancos de encontro a parte incerta, com a geada a estalar nos vidros e uma certa ausência no banco ao lado. recordo-te as mãos quietas no meu peito, o coração, a bater-me finalmente ao ritmo da vida e o teu rosto, coberto de faltas, a dar-me um mundo que se pinta de cores felizes. o resto és tu a abraçar-me e o barco a perder-se por entre o nevoeiro. depois apago as luzes e de olhos fechados enterro a manhã dentro da pele, muda, com os últimos gritos. é frio no meu corpo despido como a copa das árvores, tenho medo de ser feliz. empurro a tua falta contra o banco da frente, o gelo a comer-me os pés, a rasgar-me a pele, a partir-me os ossos todos, depois ambos sorrimos com a vida a fazer nenhum sentido. depois então já não é tarde para sermos felizes e as folhas secas, estendidas no céu da boca, fazem sentido nos sorrisos de outono a cair-me da boca. 

por: mar

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quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

porque no natal todos os passos são pequenos e o tamanho dos braços ultrapassa a distância... sento-me aqui, a sala é redonda, encolhida como o corpo caiado de frio, ao canto, sentado, espero-te entre as frinchas de luz atiradas contra o soalho, vindas da janela, por entre reflexos de uma tarde perdida num calendário onde o ano se finda. vim aqui falar-te de sentimentos como quem fala de linhas que se unem umas às outras na costura de um vestido, vim aqui falar-te com a voz rouca, tremida de frio, coberta de lã, mas as vozes que nunca falaram de sentimentos, acanham-se, perdem-se cá dentro, do lado esquerdo do peito. e é onde nos dói mais, o coração, ao lado, por dentro, onde as mãos não tocam, onde o que dói e arde e chora não pára e bate, por certo ao ritmo acelerado da minha solidão. vim aqui sentar-me, com a tarde a morder-me os calcanhares e a tua ausência a vestir-me as mãos de luvas escuras, vim aqui falar-te de amor mas perdi o jeito, triste, acanhado, de to dizer por entre outras palavras. calo-me.  

por: mar

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à data da tua morte.

olha: é natal. 
caem algumas gotas, são lágrimas no teu rosto avô e há garças que pousam nos teus ombros, encolhem-se e fazem planos de voos internos, migrações tardias. tu bates palmas com as mãos caiadas de rugas, então olhas-me e o teu rosto abre-se em ferida. será tarde? são horas de ser feliz e o relógio, entalado entre a parede e a tua ausência, rosna alguma saudade. o destino é um trevo de três folhas. da tua morte já só fala o corpo calado da avó, perdida ao canto da sala, vazia de ti, pintada de luzes que piscam e velas que iluminam alguns rostos felizes. quem me dera que voltasses, te sentasses no banco do costume e com o corpo inclinado te aquecesses na lareira, em chama aberta, em carne viva. a tua imagem a ser o natal. apartir de então todos os dias serão 24 de dezembro de 1974. 

por: mar

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segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

trazias os olhos tristes e os bolsos cansados. falaste-me com o frio entranhado nas mãos, presas em gestos pesados, cortavas o ar com as palavras e, por entre este ou aquele silêncio lá conseguimos abraçar-nos, ainda que os nossos corpos estivessem separados por um lugar vazio, mais ou menos do tamanho de um passo.

por: mar

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domingo, 14 de dezembro de 2008

sentei-me a escrever-te, a rua estava fria e a chuva nos passeios enlutava a viagem, a curta viagem do teu rosto ao meu. é triste ser inverno. pouso a minha vida com as bagagens, encharcada de tristeza. digo: então agora foges, e tu com as mãos nos bolsos, passeias o corpo de um lado para o outro enquanto empurras a ausência pelo bolso das calças fora. estás farto de ser morto.

por: mar

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braga para ser braga tem o escadario dos teus braços, esguios, mansos como os cedros ao longo da estrada, e por ser braga tem a tua boca no verde caiado nas paredes das casas, nos muros que se erguem para lá dos nomes, onde se matam sorrisos a tiros de caçadeira. e por ser braga é tua e minha, a cidade dos teus olhos, amena como tempo, pintada de chuva às vezes. e braga és tu e eu de mãos dadas, a atravessar comboios à velocidade de qualquer falta, a levantar silêncios e a elevar ausências. braga para ser braga nunca terá o meu regresso, nem na pressa nem no vagar, será uma flor murcha na lapela, um cântaro vazio à beira da fonte, um rosto perdido no meio de uma multidão. e para seres braga tu despes-te de mim e desces a calçada com o coração caído, o corpo tombado na rua deserta e morre-te braga no olhar, defronte, com o amor entalado entre as quatro paredes de um corpo que é uma casa inabitada.

por: mar

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sábado, 13 de dezembro de 2008

quantas sílabas tem o amor? e ela ficou a subtrair o tempo, a esvair-se nos ponteiros do relógio, tic-tac tic-tac, ela ficou encostada ao seu outro lado, negra, voou com a cabeça entalada na frincha da porta, voou sobre a casa, a rua, a cidade inteira presa no cume dos seus olhos, altos como duas montanhas prontas para serem escaladas. e ela chorou o tempo preso ao patoá da língua, numa palavra, amor. ela tremeu o teu nome em siglas ditas, reditas, ao mesmo tempo, pausa sobre pausa, letra sobre letra, até já não restar mais nada, nem porta, nem frincha, nem cabeça, nem coração. nem sílabas para se contar o amor por entre os dentes. e então ficou, tempestuosa, apertada como o dedo no gatilho, até morrer no disparo da palavra, dita ao ouvido, encravada no cano da arma, a explodir pólvora do lado esquerdo do peito. amor. 

por: mar

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sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

ele espera por ela. mão esquerda no bolso, cigarro na mão direita, algum fumo na garganta e uma saudade a morder-lhe a pele do corpo, até ao osso. ela vem apressada, desce a rua, encosta o coração pesado mais ao centro para equilibrar o corpo, no descompasso um sorriso morre-lhe, amedrontado, na face. quando se olham já a rua vai a meio e na metade que falta ele dá-lhe a mão, a esquerda. ela corre, o coração foge-lhe do peito e arrasta-se no alcatrão até comer a cena seguinte. breve. leve o adeus, o acenar da mão com o cigarro acabado, a boca contra a boca, os lábios secos, cortados como a rua ao meio. não há consolação, nem reza, nem sina, só a desolação de mais uma despedida, um adeus terceiro, nunca o último. ele inverte os passos e entra no comboio, o olhar tomba-lhe sobre a estação coberta de rostos desconhecidos. a noite a ela cega-lhe as lágrimas, encravadas como as unhas na carne viva das mãos. 

sempre se amaram mas nunca entenderam que amor era aquele,
tão longe do corpo, tão perto do coração.

por: mar

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a morte tem passos breves, respirou ela as palavras que herdara da sua avó, já gasta, velha como as contas do rosário que lhe ofereça no templo de nossa senhora de fátima. fátima como ela, a menina, de olhos rasgados como as pétalas das flores do canteiro maior da praça, curvado ao peso da terra, escura, apanhada nos campos, do outro lado da cidade. a outra dançava com as peles das extremidades enrugadas, taciturna nos movimentos cautelosos ao redor de si mesma, sacudia algumas dores mais superficiais e ia, rua abaixo, passo travado, saia rodada, olhar cigano como o xaile seguro às costas e a sina na palma da mão. não se cruzaram porque a rua dela era paralela à da outra mas ficaram a ver morrer o gato, no cruzamento ao fundo, atropelado. ela respirou a melancolia de um nome santo enquanto puxava as contas do rosário de encontro à palma. a outra numa oratória a todas as tias, cunhadas, sobrinhas, mães, ciganas, chorou o mau presságio do gato preto ensanguentado contra o alcatrão. a morte tem passos breves, e lá foram, uma à frente da outra, pela manhã de um dia de semana, feriado no calendário. 

por: mar

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ela abriu os olhos e fechou o mundo inteiro dentro deles, ancorado no fundo do azul marinho que pendia em forma de lágrimas no castiçal da sala. hoje é domingo e as aves migratórias regressam sob o peso das asas molhadas pelas chuvas de abril, escurecem algumas vozes, compridas vozes, migratórias, presas ao fundo da rua que é um beco sem saída. e na despedida os pássaros vagueiam em torno da sua cabeça. ela está morta e a sua morte serve de presságio à consequente morte da paisagem, rubra, escarlate como o sol a adormecer atrás do rio. meia dúzia de gritos permanecem apertados contra o peito, onde algumas dores mais profundas fazem ninho, e dos gritos que se ouvem chegam as palavras, sussurradas como silêncios, apodrecidos entre os dedos das mãos. tudo é pó e voa com a aragem ao longo dos caminhos de terra batida. o cão late à porta de casa, com o pêlo sujo à espera de um carinho. ela desce as escadas e vem pousar-se na grade, fala com o medo a meter-se-lhe entre os dentes, não consegue adormecer. 

por: mar

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segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

enquanto espero por ti escrevo: o frio da rua deserta, caída ao fundo olhar, contorcendo uma dor qualquer que serve de agasalho à minha solidão.

tu desces a rua, vens devagar, o corpo inclinado sobre o peso do peito, são muitas faltas. o lado esquerdo desce mais rápido que o direito. às vezes dobram-se-te demais os joelhos e cambaleias, é talvez por isso que quase cais, ou a rua é demasiado inclinada ou és tu que és demasiado direita. tens as mãos cansadas, largadas ao abandono de cada passada, os pés não são certeiros e lá se vão metendo entre as fendas do passeio. os teus olhos trazem o corpo inteiro neles, tão encolhido que não sei como ainda te bate o coração, partido em duas metades iguais, servido numa bandeja de imperfeições. e tu desces a rua e a tua tristeza com ela, vens pequena, com o teu ar de mimosa coberta de geada.

por: mar

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um dia não haverão os sardões no pátio, ao sol, nem haverão as matas agrestes, erguendo-se por detrás da cebe, não haverão as tuas mãos, de cigana surda, à espera em cima do colo, nem haverá o latir dos cães dentro das casas de lata, do outro lado do quintal. um dia, talvez se teça de esperas a tua ausência, longe de tudo o que agora me arde nas retinas, ainda nascerão memórias entre o pó em cima dos móveis e a roupa cheia de cotão. enquanto tudo morre, a tua saia de duas ou três rodas nasce, ao fundo, junto à parede, caída como os teus olhos tristes nas manhãs frias de dezembro. e é na ternura do teu cabelo, atado ao cimo da cabeça com um lenço da mão, a cair-te peito abaixo até te morrer nas dobras da camisola de lã, que se fazem as minhas horas, encaixadas umas entre as outras, a preencher um dia, inteiro como a tua imagem de gato perdido na sarjeta.

por: mar

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